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sábado, 6 de fevereiro de 2010



Juntos, Chico e Mart'nália ....é demais!!!!

“Um poeta não se faz com versos”

“Um poeta não se faz com versos”

Postado em 10 de novembro de 2009
por Rodrigo de Andrade
Como Buda, Confúcio, Sócrates ou
Jesus, Torquato não deixou livros.
— Paulo Leminski
Torquato bebendo & fumandoO caso de Torquato Neto, hoje, é típico de autor mais citado que realmente lido. Artista multimídia, durante a segunda metade da década de 1960 e os primeiros anos da de 1970, envolveu-se com poesia, jornalismo, televisão, cinema e música. Figura-chave na eclosão da tropicália (e isso lhe teria garantido lugar de destaque na história da vanguarda artística brasileira), conquistou grande reputação entre o meio artístico-cultural como uma voz maldita, rebelde, marginal. Praticou suicídio na madrugada seguinte ao seu aniversário de 28 anos, no dia 10 de novembro de 1972. O feito ajudou a envolvê-lo numa aura romântica: o poeta que não temia a morte.
Apesar de ter deixado uma vasta produção em diversas áreas (cinema, jornais, letras de música, etc), em vida, não chegou a ter um único livro publicado. Postumamente, em 1973, a ex-esposa, Ana Maria Duarte, e o amigo Waly Salomão organizaram Os últimos dias de paupéria. A obra contem poemas, páginas de diário, colunas em jornais, conta com prefácio de Augusto de Campos e vinha com um compacto encartado. Com 116 páginas, os 5 mil exemplares se esgotaram rapidamente. Quase dez anos depois, em 1982, uma segunda e última edição da obra foi lançada. Revista e ampliada, então com quase 400 páginas, apresentava textos de Décio Pignatari, Luís Otávio Pimentel e Hélio Oiticica, além de uma entrevista com o autor feita por Régis Bonvicino. Novamente, o livro se esgotou de maneira rápida.
Torquatália - I - Do lado de dentro + II - Geléia GeralCom certa freqüência, seus poemas foram musicados por artistas do rock e da MPB, e escritos de sua autoria (alguns inéditos) foram incluídos em antologias poéticas no Brasil e exterior. Apenas em 2004, Torquatália é lançado (capas ao lado). Trata-se de dois volumes, ao estilo “obras completas”, com uma quantidade ainda maior de material inédito, incluindo-se aí todas as suas colunas em jornais (que o revelam como um precursor do estilo gonzo em nosso país). Organizados por Paulo Roberto Pires, os livros oferecem material em profusão, melhor ordenado e com novos dados fatuais preciosos. O resgate da produção do piauiense merece atenção, tanto pelo seu valor intrínseco, resultante de uma aguçada sensibilidade poética, quanto pelo vulto histórico, notável e marcante, do seu autor. Mesmo morto, a voz e as idéias de Torquato continuam a ecoar.
Confira abaixo uma biografia do artista que desenvolveu um modo marcante de ligar a poesia — em qualquer que seja a forma que ele escolha para se manifestar artisticamente — ao seu próprio fio vivencial.
Na medida do impossível:
ascensão e queda de um poeta maldito
ou
Um poeta não se faz com versos:
um breve relato biográfico [1]
A arte é longa, a vida é curta,
e o sucesso fica longe demais.

— Joseph Conrad
é um sistema que invento
me transforma
e que acrescento
à minha idade
— Torquato Neto
Torquato Pereira de Araújo, neto (com vírgula e letra minúscula) nasceu no dia 9 de novembro de 1944, em Teresina, Piauí, sob o signo de escorpião. Complicações no momento do parto ocasionaram seqüelas que impediram sua mãe de ter outras crianças. O casal até tentou, mas o resultado foi um aborto involuntário no sexto mês de gestação daquela que seria a irmã do poeta — e que já tinha até nome escolhido, Rosa Maria. O fato de ser filho único foi marcante na formação de Torquato. Era muito mimado, recebendo cuidados exagerados de sua mãe, que nunca o surrou, e nem permitia que o pai o fizesse.
Torquato com a avó, a Dona SazinhaDescendente de duas famílias de origem portuguesa, era filho de Maria Salomé da Cunha Araújo, a dona Saló, e Heli da Rocha Nunes, o doutor Heli. A mãe era professora, o pai fora inspetor de educação e, mais tarde, promotor público. Dentre seus parentes, dois merecem destaque. O primeiro é a avó materna, Maria Cunha Araújo, a dona Sazinha (foto ao lado). Uma figura um tanto folclórica, que nutria uma estranha atração por deficientes, como cegos, surdos, mudos, gagos, fazendo-se cercar dessas pessoas, e apesar de ter doze filhos, chegou adotar a um anão. Havia algo de excêntrico no comportamento natural da avó, e Torquato demonstrou um afeto especial por ela durante toda a vida. Outro parente próximo, irmão de uma cunhada de sua mãe, era Mário Faustino[2] , poeta que exerceria grande influencia sobre Torquato.
Desde menino era muito franzino e tímido, sempre preferindo as leituras aos esportes. Era canhoto, para o desgosto de sua mãe, que amarrava talas e saquinhos na sua mão, forçando o uso da outra. TorquatinhoSomado a isso tudo, tinha o fato de ser narigudo, ter orelhas de abano, a pele muito branca e a cabeça de formato alongado. Todos esses eram motivos para torná-lo alvo de gozações no colégio. Para equilibrar tais peculiaridades, era muito inteligente e demonstrava grande vivacidade, percebida desde cedo pelos professores.  Cursou o primário em uma escola administrada por uma missão religiosa norte-americana e suas aulas começavam muito cedo e terminavam apenas às 16 horas. Quando tinham por volta dos 7 anos, ao ir para a escola, sempre passava no bar Carnaúba — um lugar conhecido como rádio-calçada — onde discutia rapidamente com um boêmio chamado João Mendes, de grande espiritualidade, vasto conhecimento, e que ainda viria a se tornar prefeito de Teresina. Havia algo de magnético naquelas conversas rápidas com os adultos, e Torquato sempre tinha muitas perguntas a fazer. Seu melhor amigo de infância, o colega Wellington Moreira Franco, já deu declarações[3] afirmando que ambos eram muito sérios para a idade que tinham, e que começaram a ler muito cedo.
A primeira ambigüidade na vida do pequeno Torquato era localizada especificamente no âmbito da religiosidade e da fé. Seu pai pertencia a uma família espírita, e além de kardecista estudioso do assunto, era também membro da maçonaria local. Já sua mãe era uma católica fervorosa, identificada como uma beata típica do norte do Brasil. Naquela época, num país predominantemente católico, enraizado em sua tradição apostólica e romana, não era incomum adeptos de outros credos serem alvo de constrangimentos. Segundo o amigo Wellington, os boatos eram de que o doutor Heli mantinha diálogos com o além e colocava fogo pelos cabelos, e que mesmo sendo freqüentador assíduo da casa, temia o pai de Torquato em virtude de tudo o que diziam. As divergências de ordem religiosa se manifestavam também na escola, mas Torquato — que já fizera a primeira comunhão — tinha suas crenças insufladas pela mãe, e há relatos de que em determinada ocasião teria gritado para miss Sharlene, a diretora do Colégio Batista: “Sou católico apostólico romano, e não gosto que mexam com minha religião”.
Aos 9 anos de idade, escrevera seu primeiro poema:
O meu nome é Torquato
O de meu pai é Heli
O da minha mãe Salomé
O resto ainda vem por aí
E, desde então, não parou mais. No segundo domingo de maio, presenteava a mãe com versos compostos com métrica e rima. Era muito interessado em literatura e línguas em geral e adorava redação, matéria obrigatória naqueles tempos de português quase vernáculo. Quando adulto, costumava dizer que sua matéria preferida na escola era aquela que o obrigava a escrever. Aos 11 anos, pediu ao pai, como prêmio pelo sucesso no exame de admissão ao ginásio, uma coleção das obras completas de Shakespeare, “especialmente com a peça Rei Lear”. Dona Salomé, surpresa, sugeriu que ele escolhesse um autor “mais fácil”, um título apropriado para a sua idade. O assunto foi encerrado quando ele argumentou: “Basta ler com atenção que a gente entende tudo”.
Torquato e a bikeDesde moleque demonstrava vocação para se indispor com autoridades, e inúmeros são os relatos de problemas envolvendo professores, diretores de escola, e mesmo certas traquinagens, como quando atravessou a ponte sobre o rio Poti, correndo de braços abertos, assim que o prefeito e o padre descerraram a faixa vermelha da inauguração em evento solene, antes que eles sequer dessem o primeiro passo. Foi nas águas desse mesmo rio que ele arremessou o relógio recém ganho de sua mãe, em um Natal. A engenhoca obrigava-lhe a cumprir encontros e obrigações. Era demais para o espírito inquieto de Torquato. Por volta dos 13 anos, teria tomado o primeiro porre em uma festa junina, e terminado a noite num cabaré barato.
Na escola, revelava grande interesse pelos poetas apresentados no currículo: Luís Vaz de Camões, Castro Alves, Olavo Bilac, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias. No início da adolescência, mostrava aos colegas letras de músicas que transcrevia no caderno, como a da canção “My prayer”, do grupo The Platters. Gostava de conversar com diversos adultos, como o jornalista e radialista José Lopes dos Santos, demonstrando desde cedo o interesse por música e artes. Aos 14 anos (1958), na terceira série do ginásio, Torquato pediu de presente ao pai as obras completas de Machado de Assis, autor que pretendia “estudar mais profundamente”. Sua paixão pela leitura já era fato consumado, ele teve seu desejo atendido. Na mesma época, decide estudar inglês em carga extra e passa a ter aulas particulares.
Como futuro compositor e jornalista musical, é interessante notar como se deu seu primeiro envolvimento com profissionais do meio musical. Após assistir um show de Luiz Gonzaga na praça principal de Teresina, fez amizade com músicos e membros da equipe técnica, e seguiu viagem com o grupo — surpreendentemente, com o aval da mãe, superprotetora — em apresentações pelas cidades da região. A partir de então, se declararia fã daquele gênero musical — o baião —, vertente autêntica do mais puro regionalismo.
O ano de 1959 seria marcante na vida de Torquato. Na época, lia muito Sommerset Maughan e Edgar Alan Poe, também havia devorado a obra E a Bíblia tinha razão, de Werner Keller. Em poesia, começava a renegar os românticos e passara a se dedicar aos simbolistas e modernistas. Concluiu o ginasial e optou por cursar o científico em Salvador, seguindo, em certo sentido, os passos do tio Mário Faustino e H. Dobal[4]. Macalé e Torquato Neto - parceiros de composiçãoAntes, porém, aproveita as férias de final de ano para passar uma temporada no Rio de Janeiro com o amigo e ilustrador João Viana, o Jota. O marcante nessa breve estada em Ipanema foi o modo como se encantou pela cidade e com a amizade feita com um vizinho que, futuramente, viria a ser um de seus parceiros em composições famosas: Jards Macalé, malandro boêmio que bebia diretamente na fonte da musicalidade carioca. Mesmo retornando em seguida para Teresina, a amizade entre os dois se manteria sólida até o final. Outro ponto digno de nota nessa viagem é o fato de ter composto a primeira letra para uma canção, executada pelo amigo Jota, intitulada “Quem dera”.
Torquato Neto entra o ano de 1960 indo estudar em Salvador. Pelo seu perfil artístico e postura atuante, é quase possível dizer que fora predestinação ou, no mínimo, uma relação de sincronicidade jungiana. Como bem sintetizou Luiz Carlos Maciel[5], citando uma surpreendente profecia de Glauber Rocha, a Bahia seria o berço da nova cultura brasileira. Algo definitivo estava para acontecer e aconteceria na Bahia. Não no Rio, muito menos em São Paulo: a transformação sairia dali. A cidade vivia uma saudável e estimulante efervescência cultural, concentrando o esforço e o talento de diversos artistas e intelectuais que despontavam com uma arte agressiva e de vanguarda. Em diversos sentidos, se pode existir um responsável por isso, ele é o reitor da Universidade Federal da Bahia, Edgard Santos. Conforme demonstrado por Carlos Calado[6], o reitor  investia pesado no avanço cultural da instituição e da cidade, idealizando uma espécie de choque intelectual na tentativa de reverter a marginalização cultural da Bahia dos anos 1940. Em sua concepção, a Universidade — necessariamente livre para criar e refletir — deveria desempenhar a função de ponta-de-lança da sociedade. Assim, em vez de contratar professores retrógrados, ou incentivar artistas convencionais, Santos preferiu apostar na inteligência. Ao implantar um programa cultural de caráter vanguardista, acabou ganhando vários adversários e desafetos. Além da esquerda mais populista, os próprios alunos das escolas ligadas às áreas científicas reclamavam da suposta predileção do reitor pelas escolas de arte. Embora também tivesse sido o responsável pela criação do Instituto de Física e da Escola de Geologia, Santos realmente não economizava recursos para conseguir os melhores professores para as escolas de arte[7].
Espetáculos e eventos culturais não faltavam na cidade: happenings; um número considerável de salas de cinema, com uma grande variedade de filmes em cartaz; concertos, como o do pianista David Tudor, executando obras conceituais do iconoclasta John Cage; atrações programadas para museus da Universidade; a Escola de Teatro, dirigida na época por Eros Martim Gonçalves, promovia a montagem de peças de autores contemporâneos, como Tenessee Williams, Albert Camus, Bertold Brecht, Paul Claudel. Como se não bastasse — ou, na verdade, também em função disso —, diversos artistas que viriam a ser muito atuantes na história cultural brasileira circulavam por esse meio, vivendo e ajudando a promover esse renascimento cultural: o Jornal da Bahia tinha como diretor de redação João Ubaldo Ribeiro e produzia ricos suplementos culturais; os futuros maestros Júlio Medaglia, Isaac Karabtchevsky e Tom Jobim eram bolsistas da Sinfônica; Rogério Duarte já despontava como um mito das artes gráficas; o gaúcho Luiz Carlos Maciel estudava teatro na cidade, e passaria um ano nos Estados Unidos pesquisando a contracultura, até voltar para tornar-se professor; Glauber Rocha começava a produzir o que viria a ser uma revolução no cinema; além de toda a trupe que tomaria de assalto a música popular brasileira ainda naquela década: Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil, Tom Zé…
TorquaMatriculado na 1ª série do curso científico, em fevereiro de 1960 Torquato tinha  acomodações no alojamento coletivo do Colégio Nossa Senhora da Vitória. Imediatamente se incorpora ao grupo de teatro e seu talento como redator o conduz ao posto de editorialista na revista Apamema, que dava voz aos pais, mestres e alunos da escola. Recebia regularmente da mãe, junto com a mesada, um embrulho contendo itens de higiene pessoal, roupas e outros agrados. Seus pais, no intuito de oferecer-lhe um ponto de apoio na nova cidade, aproximaram-no de Luiz Machado, um teresinense amigo da família. E foi uma agradável surpresa para Torquato descobrir que o filho de seu Luiz, o franzino Duda Machado[8], e ele tinham muito em comum: até o ano anterior, Duda estudara no mesmo colégio em que ele estava matriculado; também era amigo de João “Jota” Viana, a ponto de já ter ocupado o mesmo quarto em que Torquato havia se hospedado no apartamento da família, no Rio; e também se interessava por poesia e cinema. Ambos tinham a mesma idade e desenvolveram fortes laços de amizade. Desde esse primeiro dia, manteriam o ritual de ouvir música juntos, com preferência para jazz e clássicos.
Envolvendo-se com o cenário da cidade, no ano seguinte, Torquato já se incorporaria à equipe de Barravento, um cult, e primeiro longa-metragem de Glauber Rocha — que ele conhecera nas rodas dos cineclubes —, chegando a trabalhar diretamente como assistente de direção e efetivamente exercendo o cargo de diretor em algumas tomadas. Esse seria o primeiro grande filme brasileiro do Cinema Novo, e o poeta teresinense estava entrelaçado diretamente com sua feitura.
Torquato_NetoNos seus estudos literários, Torquato passaria a privilegiar a leitura dos modernos Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto — a quem ele se referia como “o agreste”, “a faca seca”, ou ainda “a secura do engenho”. Problemas com indisciplina o levaram a se mudar para uma pensão. Por aquela época relata-se que já incorporava uma porção de melancolia ao seu comportamento cotidiano, adotando uma postura de poeta cerebral, introspectivo. No centro literário dos alunos do colégio — espaço batizado de Academia Ruy Barbosa —, iria produzir um grande volume de material escrito, sendo que grande parte permanece inédito por decisão de sua viúva, Ana, que os considera infantis e amadores, sem relevância para o pensamento e a obra do artista. Tratam-se de textos em prosa e poesia, além de crônicas, que eram apresentadas ao microfone da Rádio Excelsior. No final de 1961, durante uma sessão oficial, pediria seu afastamento da diretoria da Academia Ruy Barbosa — e consequentemente da coordenação da biblioteca da escola. Os motivos, dizem, seriam questões de natureza disciplinar com colegas e funcionários do colégio. Volta a estudar inglês, freqüentando as turmas da Associação Cultural Brasil-Estados Unidos, onde, sistematicamente, por um longo período, afanou uma grande quantidade de livros que lhe interessavam.
É nesse período que Torquato conhece Caetano Veloso e, em seguida, todo um núcleo que viria a se constituir no embrião da Tropicália. A paixão pelo cinema o aproximaria também do diretor Alvinho Guimarães, participando junto com Duda como ator de Moleques da rua, curta-metragem experimental em 16mm, com trilha sonora de Caetano.
Quando volta para Teresina, durante as férias, insiste com os pais para ir morar no Rio de Janeiro. Cientes das diversas crises que promovia por indisciplina no ambiente escolar e também pela distância, doutor Heli e dona Saló negaram veementemente. Torquato revidava promovendo verdadeiros dramas. Os amigos relatam que, nessa temporada em casa, estava muito inquieto, cheio de idéias. Andava lendo Frutos da terra, de André Gide[9], e Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke[10]. Já considerava Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, a principal obra do movimento modernista, mas apontava Menino de engenho (1932), de José Lins do Rego, e Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, como igualmente fundamentais. Ainda em Teresina, escreveu para um jornal local o ensaio “Arte e cultura popular”. Importante apontar que Torquato possuía uma imensa coleção de títulos de literatura de cordel, sendo um dedicado colecionador. Também, era notório seu interesse por frases de pára-choque de caminhão.
TorquatoAté o final dessa temporada em Teresina, consegue convencer os pais e, aos 17 anos, desembarca no aeroporto Santos Dumont para morar e estudar no Rio de Janeiro. Inicialmente, Torquato morou com o seu tio Jonathan na praia de Botafogo, num dos endereços de pior fama em todo o bairro, o edifício Rajah, ocupado por prostitutas, rufiões e agregados, além de famílias e trabalhadores de baixa renda. Matriculou-se no 3° ano do científico do Colégio Ruy Barbosa, escola que era considerada uma “boate”, cujos alunos estavam interessados apenas em receber o diploma, pouco ligando para a qualidade de ensino. Ainda assim, Torquato se identificaria com o professor Geraldo França de Lima, amigo de Guimarães Rosa e futuro integrante da Academia Brasileira de Letras. Entre seus colegas, havia alguns amigos de Teresina. Um deles, Nacif Elias, recorda que logo se tornariam dados à boemia. Em conversas profundas, em torno de mesas de bar, o grupo chegaria à conclusão de que “a melhor forma de suicídio era com gás”. Dez anos depois, seria o modo com que Torquato daria fim à própria vida.
Nesse período, o poeta se envolveria com as coisas da rua, cinema, política estudantil, bares, embora, apesar das algazarras, continuasse lendo muito: livros, revistas, obras políticas, clássicos da literatura e títulos como História da riqueza dos homem, de Leo Huberman, espécie de cartilha dos revolucionários brasileiros. Sua paixão pelo cinema o tornaria um privilegiado observador da cena, em um ano particularmente favorável para as produções nacionais: chegava às telas Cinco vezes favela[11], Ruy Guerra realizava o independente Os cafajestes e O pagador de promessas, de Anselmo Duarte, ganhava a Palma de Ouro em Cannes.
No final do ano, aprovado com mérito na escola, Torquato teria que convencer a família de que precisava continuar morando no Rio. Como fator complicador, havia o fato de que os pais esperavam que ele seguisse carreira como diplomata ou advogado. Afirmando que sua real vocação era escrever, o jovem passou a insistir que queria prestar vestibular para o curso de Jornalismo, e que o Rio de Janeiro era o melhor campo de trabalho para a profissão. Para convencer os pais, lembrou que seu tio João Souza Lima era jornalista da Rádio Nacional e continuava com alguma influência no mercado. Os pais, que sempre acabavam acatando suas vontades, concordaram. Torquato não teve problemas para passar no vestibular. Assim em 1963 iniciou os estudos no curso desejado. Seus amigos conterrâneos, entretanto, não voltariam para a capital carioca.
Torquato NetoDecidido a se aproximar das questões estudantis, passa a freqüentar a UNE e se aproxima dos dirigentes do CPC, na época divido em duas correntes: os radicais, liderados pelo dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha; e os moderados, ligados ao compositor Carlos Lyra. Em um encontro de poesia promovido pelo CPC, Torquato conheceria Hélio Silva, secundarista e poeta. Juntos, mais o amigo Duda Machado, recém-chegado ao Rio, conheceriam a irmã de Hélio, Ana, num show no Teatro da UNE. A partir desse dia Torquato e Ana começaram a namorar. Na época, o casal passou a freqüentar assiduamente o cinema Paissandu, que tinha uma programação que privilegiava filmes europeus. O poeta apontava, entre suas preferências, os filmes de Luchino Visconti, Luis Buñuel, Jean-Luc Godard e o americano Nicholas Ray, entre seus atores prediletos, Toshiro Mifune e Marcelo Mastroianni.
Não demorou para que ele efetivamente passasse a morar na sede da UNE, cujo prédio abrigava ainda outras duas entidades estudantis: a AMES (Associação Metropolitana de Estudantes Secundaristas) e a UBES (União Brasileiras de Estudantes). Costumava dormir num velho sofá, no andar superior, ou mesmo sobre as mesas de pingue-pongue. Entre seus pertences, todos guardados num armário com chave, estavam uma máquina de escrever Remington portátil e uma pasta na qual guardava diversos originais, inclusive o de um livro que vinha construindo desde a adolescência, que ele chamava de O fato e a coisa, constituído por longos poemas. Composta de uma série de fragmentos, a obra ficou inconclusa, sendo que apenas alguns trechos chegaram a ser publicados postumamente. A maior parte do material permanece inédita. Esse seria um período muito profícuo, com Torquato escrevendo muito, tanto na sede da UNE quanto em mesas de bar.
Caetano Veloso e Alvinho Guimarães chegaram de Salvador para passar uma temporada no Rio e foram calorosamente recebidos por Torquato, que tratou de promover o lançamento do curta Moleques de rua no Rio. Os três se aproximariam bastante, articulando novos filmes e músicas. Jards Macalé e Caetano se conheceriam através de Torquato. Na época, o poeta estava impressionado com Cantos, de Ezra Pound, que se tornara seu livro de cabeceira, e o deixaria receptivo ao trabalho dos concretos Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, tradutores da obra. Também impressionava positivamente os amigos ao disseminar a poesia do tio Mário Faustino, falecido no ano anterior.
TorquatoDurante as férias, na metade do ano, Torquato aproveitaria uma breve passagem por Teresina para conseguir um documento que lhe garantisse, diante do Ministério do Trabalho, o direito de exercer a profissão de jornalista. Estando matriculado na faculdade, e com uma declaração forjada da Rádio Pioneira lhe oferecendo um contrato, conseguiu a emissão de uma carteira de trabalho.
No início de 1964, ele participou de mais uma película, como figurante. O filme era Canalha em crise, do cineasta piauiense Miguel Borges. A cena com o poeta foi rodada em um lugar que ele já freqüentava assiduamente, o café Lamas — um ambiente de clima existencialista. O longa-metragem foi apreendido pela censura e liberado apenas dois anos depois, com vários cortes.
A situação política do país fervilhava naquela época e resultaria em fatos que marcariam para sempre sua história e toda aquela geração. No dia 31 de março, às nove da manhã, Torquato acorda no sofá da UNE com alguém gritando pelo seu nome da rua. Era o cunhado Hélio, pedindo para que ele descesse imediatamente. Chegando à calçada, ainda sonolento, ficaria sabendo que os militares tomavam conta do país, que a cidade estava paralisada, sem transportes e sem comunicações. Consigo, carregava apenas a pasta com seus originais. Juntos, iriam para a casa de Hélio e Ana, atravessando a paisagem desoladora da cidade. Horas depois, a sede da UNE seria incendiada por tropas militares, em um ato comandado pelo civil reacionário Flávio Cavalcanti, apresentador de televisão, de nada adiantando a resistência por parte de alguns estudantes (que, inclusive, relutavam em abandonar o prédio, mesmo em chamas). Nem a chuva impediu a destruição completa do edifício, junto com praticamente todos os pertences de Torquato. Durante a noite, os dois amigos ficaram trancados em casa, lendo O auto da compadecida, de Ariano Suassuna, interpretando todos os personagens. Seguia-se o período mais negro da história recente do país. No dia 11 de abril, o Congresso Nacional conferia a Presidência da República ao general Castelo Branco, consolidando o golpe. Tudo em nome da família, tradição e propriedade. Os dias seguintes foram de desconsolo e ressaca cívica, com a censura se impondo com força total, sindicatos sendo neutralizados e ocorrendo demissões em massa no funcionalismo público. Em virtude de todos esses acontecimentos, o pai de Torquato, doutor Heli, vai pessoalmente ao Rio e o leva de volta para Teresina. Lá, o poeta mantém por três meses um programa de rádio sobre música popular.
O fechamento da UNE e o desmantelamento da política estudantil teria sérias conseqüências na sua vida. Estava decidido a trancar a matrícula na faculdade, que ele só vinha freqüentando esporadicamente. Mas precisava encontrar um motivo para permanecer no Rio. O jeito seria começar a trabalhar. Primeira carteira de jornalista de Torquato NetoAntes de voltar para a capital carioca providencia uma carteira “fria” da UPE — União Piauiense de Estudantes — para continuar pagando meia-entrada em cinemas e teatros. Com a ajuda do tio João (cassado na Rádio Nacional, estava trabalhando no jornal Última Hora), Torquato foi contratado pela recém-criada agência de notícias de Natalício Norberto, a Empresa Jornalística Eniservice, que produzia textos para diversas revistas e jornais (imagem da carteira de jornalista ao lado). Ao se relacionar com outros profissionais, as leituras do poeta iriam se sofisticando, e seu diferençal como redator seria justamente pelo fato de recorrer a citações de diversos autores em seus textos: Souzândrade, Maiakovski, Drummond, Vinícius de Moraes. O trabalho lhe garantiu condições de morar sozinho e ter algum conforto.
O ano de 1965 seria um dos mais marcantes de sua trajetória. Escrevia poemas em profusão, com a intenção de serem musicados. É nesse período que desponta como letrista. O reencontro com Caetano Veloso, que fora ao Rio garantir suporte técnico para a irmã — Maria Bethânia — que substituía Nara Leão no musical Opinião, renderia a primeira parceria da dupla: “Nenhuma dor”. Logo Torquato passaria a integrar definitivamente o embrião do que viria a ser o grupo tropicalista, encontrando-se com os parceiros musicais no legendário Solar da Fossa[12]. São desse período também suas primeiras parcerias com Gilberto Gil, em canções como “Louvação”, “Minha Senhora” e “Zabelê”, que se revelariam importantíssimas para o próprio reconhecimento do grupo entre o meio artístico no eixo Rio-São Paulo. Inclusive, o teste de fogo que permitiu Gil integrar o time do programa televisivo O Fino da Bossa — na TV Record, por onde passariam todos os grandes artistas da MPB — era convencer Elis Regina de seus dotes como músico, o que foi feito com a apresentação da então inédita “Louvação”. A “Pimentinha” teria gostado tanto da parceria entre o baiano e Torquato que gravou a canção com Jair Rodrigues. A música se tornaria um grande hit nas paradas de sucesso, dando título ao primeiro LP de Gil.
1965
Além do Solar da Fossa, o poeta também circulava entre outros meios artísticos, como o Teatro Jovem, de Cléber Santos — que em diferentes épocas disporia de atores como Wanda Lacerda, Roberto Bomfim, Renata Sorrah, Carlos Vereza ou José Wilker. Pouco depois também iria às reuniões na casa de Vinicius de Moraes, freqüentadas por intelectuais engajados como Ênio Silveira, Paulo Francis e Flávio Rangel.
Nessa época, Torquato já consumia bebidas alcoólicas em excesso. Além de cerveja, alternava cachaça com conhaque. Também estava fumando muito, consumindo uma carteira de cigarros por noite. Sofria de uma constante angústia existencial, demonstrando sempre estados psicológicos depressivos. Não há registro de quando, exatamente, ele começaria a fazer uso de psicotrópicos, mas nessa fase fumava maconha regularmente.
Por um curto período, Torquato firmaria amizade com Edu Lobo, o que renderia mais três parcerias: “Lua nova”, “Veleiro” e “Pra dizer adeus” — outro sucesso estrondoso registrado por Elis Regina. Torquato conquistaria repercussão entre o meio artístico e na própria mídia como letrista. A revista Realidade, na edição do mês de novembro, o apontava como um dos novos talentos, em uma matéria de mais de dez páginas intitulada “Os novos donos do samba”. Seria essa reportagem que chamaria a atenção dos concretistas para o embrião tropicalista, devido às palavras de Caetano sobre a “retomada da linha evolutiva da música popular brasileira”. As parcerias de Torquato iam se sucedendo, dando origem a mais e mais músicas: “Viramundo”, “Minha namorada”, “Mamãe, coragem”… Sobre a metodologia de trabalho, o poeta afirmava: “Não existe nenhum esquema rígido. Eu sempre faço uma letra que chamamos de ‘monstro’ e, a partir daí, a gente discute junto, trabalhando sobre ela. A música, entretanto, é sempre de Gil ou Caetano”[13].
Torquato, Caetano e CapinanCom toda a agitação no período dos grandes festivais de música, a partir de meados de 1966, o grupo baiano — do qual Torquato era integrante — viu sua popularidade aumentar. Mas apesar de toda repercussão, fama, e algum dinheiro extra por conta dos direitos autorais, Torquato tinha crises freqüentes de depressão. Amigos próximos o ouviam falar em suicídio. Continuava trabalhando como jornalista e exagerando no cigarro e na bebida. Junto com Caetano e Capinam, atravessaria madrugadas escrevendo o espetáculo musical Pois é, que contava com Gil, Bethânia e Vinicius de Moraes.
A verdade é que, talvez em função da desilusão com o panorama do país, as escolhas culturais do poeta, que antes eram marcadamente regionais, passam a tomar uma dimensão maior, planetária. A busca por identidade não encontrava mais sustentação nas raízes, mas em valores que lhe conferissem segurança aos sonhos e utopias. A aproximação com a música, os ideais e a arte da contracultura já começavam a dar alguns indícios. É marcante a noite em que Caetano, Gil e ele passaram com Luiz Carlos Maciel, discutindo justamente a cultura alternativa, a contracultura. O gaúcho se converteria no “guru da contracultura” no Brasil graças a sua coluna Underground, no Pasquim, no qual publicava textos justamente sobre as manifestações dessa expressão de dissidência em todo o mundo. Mas isso seria no futuro. Ainda assim, naquela época Maciel já era um verdadeiro expert no assunto, sintonizado com o que acontecia nesse campo. O trio proto-tropicalista já estava, sem dúvida, alinhado com toda essa postura e forma de pensamento, e o encontro serviu para firmar as convicções de que deveriam se banhar naquela vertente, incorporando em seus trabalhos as novas influências internacionais, a partir de sua base inevitavelmente nacional. Além das leituras e dos filmes, passaram a ouvir rock com muito mais atenção — sobretudo Beatles. E estavam abertos às questões estéticas que permeavam essas escolhas. A partir de então, a produção musical e artística do grupo não seria obra do acaso ou do improviso. Pelo contrário, havia a intenção assumida e deliberada de promover uma mudança radical nos valores estabelecidos. A idéia não era apenas lançar um novo estilo musical ou difundir uma nova atitude crítica. Eles já tinham voz e autonomia para deflagrar as diretrizes uma nova estética. Quando os álbuns de estréia de Gilberto Gil e de Caetano Veloso e Gal Costa foram lançados — contendo um total de cinco letras de Torquato[14]  —, a sonoridade que traziam já não condizia com os novos rumos que eles estavam tomando.
Gil, o padrinho do casamentoEm 11 de janeiro de 1967, Torquato e Ana se casaram. A cerimônia foi bem comportada, com o padre tendo proibido previamente qualquer cantoria ou roupa extravagante. O padrinho fora Gilberto Gil. Outros artistas próximos compareceram à cerimônia, como Caetano e a namorada Dedé Gadelha, Chico Buarque e Marieta Severo. Jornais e revistas chegaram a noticiar o enlace matrimonial, já que o poeta era um artista que despontava com significativo relevo no cenário nacional. Quem não aprovou muito foram doutor Heli e, principalmente, dona Saló. Para eles, a moça era tão extravagante e desregrada quanto ele: freqüentava bares, tomava cerveja e fazia parte da turma afinada com a nova atitude liberal da mulher nos anos 1960.
A casa deles passou a ser ponto de encontro dos muitos amigos. Maria Bethânia chegou mesmo a passar uma temporada instalada no sofá da sala, assim como Caetano. Capinam, Gal Costa, Chico Buarque, Gilda Grilo e Norma Bengell eram as figuras habituais a circular pelo recinto. Nana Caymmi, que na época era namorada de Gil, se sentia à vontade, acolhida e protegida na residência. Afirma que sofria com o preconceito racial por ser divorciada, mãe de três filhos, envolvida com um afro-descendente. Declarou, posteriormente, que a presença de casais “entendidos” (leia-se, homossexuais), como Maria Bethânia e Duda Cavalcanti, e a sensibilidade e cabeça aberta de Torquato a ajudaram a sentir-se confortável com a idéia de rompimento das tradições. Outras figuras de renome apareciam esporadicamente por lá: João Bosco, Alzira Cohen, o sambista Ismael Silva, a atriz Odete Lara, o cineasta Antônio Carlos Fontoura. A decoração era criativamente artística, com objetos convencionais formando verdadeiras instalações pelo pátio e interior da residência.
Na época, Torquato se dividia entre dois empregos. Trabalhava como diretor de relações públicas da gravadora Philips — uma das mais importantes do mercado fonográfico —, preparando textos de divulgação dos álbuns que eram lançados, e exercia também uma função semelhante no setor de propaganda da Editora Abril. Estava então totalmente envolvido com o meio musical.
Em março de 1967, Torquato faria nova incursão no jornalismo, em um formato que até então não havia praticado. Seu prestígio como escritor lhe garantiu o convite para assumir a coluna Música popular em O Jornal dos Sports — famoso pelas suas páginas em cor-de-rosa, inspiradas no jornal italiano La Gazzetta dello Sport. Com periodicidade (quase) diária, permitiu ao poeta abandonar os outros empregos e se dedicar totalmente ao jornalismo cultural. Ainda que a publicação não fosse das principais na época, nem tivesse o prestígio do Jornal do Brasil ou Correio da Manhã, tinha grande penetração popular. Ele se valeria do espaço conquistado para dar maior repercussão ao trabalho dos amigos, promovendo shows, elogiando discos, chamando a atenção para os artistas que ele considerava relevantes. Em contrapartida, dava vazão a sua verve agressiva, atacando aqueles a quem se opunha, como a indústria fonográfica brasileira e as sociedades arrecadadoras de direitos autorais (o que ocasionou sua expulsão da Sociedade Brasileira de Autores, à qual era inscrito como compositor). Além dos artigos, sempre encerrava a coluna com notas rápidas sobre novidades do universo musical. Aos domingos seu espaço era maior: uma página inteira no suplemento O Sol. Caetano Veloso iria referenciá-lo na quarta estrofe da marchinha “Alegria, alegria” com os versos: o sol nas bancas de revista / me enche de alegria e preguiça / quem lê tanta notícia / eu vou
Torquato jornalistaA atividade jornalística não impediria Torquato de desenvolver suas parcerias musicais nem de continuar se articulando e produzindo culturalmente. Desde meados de 1966, ele e o grupo baiano estavam em constante trânsito entre Rio e São Paulo, onde a turma se hospedava no Hotel Danúbio. Preparavam-se para os próximos festivais musicais, como o da TV Record que aconteceria no segundo semestre de 1967. É o momento de gestação da tropicália, marcado pela arregimentação dos artistas necessários, troca de informações, discussões de caráter teórico e definição de princípios estéticos. O poeta estaria próximo àquela efervescência, relacionando-se diretamente com os envolvidos, produzindo conjuntamente e, como jornalista, cobrindo os principais eventos. Com Gilberto Gil, produziria clássicos do tropicalismo, como “Domingou” e “Marginália II”.
Um evento curioso, nessa época, foi o fato de Torquato receber créditos equivocadamente por uma canção presente no primeiro disco solo de Caetano Veloso. A faixa “Soy loco por ti, América” havia sido composta no exato momento em que Capinam, Gil e Torquato ficaram sabendo da morte de Ernesto Che Guevara, pela televisão. Prontamente, Capinam resolvera homenagear o ídolo escrevendo uma longa letra em “portunhol”, já que Caetano havia manifestado o desejo de gravar algo envolvendo a mescla pouco ortodoxa dos dois idiomas. Gil criou a melodia e Torquato, apesar de estar presente no ato de criação, não esteve envolvido no processo. Porém, foi ele que levou até a gravadora o envelope com a letra datilografada. Na sede da Philips, confundiram-no com o autor e na primeira tiragem do álbum seu nome constava nos créditos. Ele próprio solicitaria, várias vezes, que o excluíssem, o que veio acontecer nas prensagens seguintes. Entretanto, em regravações e coletâneas seu nome voltaria a parecer. Foi mais um fato que ajudou a construir seu mito como artista boicotado.
Em janeiro de 1968, Torquato, Capinam e Gil trabalhavam no roteiro de uma série de três programas televisivos sobre o tropicalismo, que seria transmitida pela TV Globo. Entretanto, o projeto sofreria um forte abalo com a censura dos textos de Torquato e o afastamento de Zé Celso Martinez, diretor convidado pelos autores, por exigência do patrocinador, Rhodia. Somente após a metade do ano que um programa único seria finalizado, com vários cortes no roteiro e sem praticamente nenhum dos radicais happenings idealizados.
O jornalista Nelson Motta, aproveitando o lançamento do disco de Caetano, batizou o movimento cultural nascente em sua coluna Roda Viva, no jornal Última Hora de 5 de fevereiro de 1968. Com o título “A cruzada tropicalista”, o texto afirmava que um grupo de artistas buscava reconhecimento nacional e internacional ao fundar um novo movimento. As pessoas citadas não gostaram, e coube a Torquato se manifestar oficialmente com o artigo “Tropicalismo para os iniciantes”.
Foi nessa época que Torquato convocou os amigos e propôs um trabalho coletivo, um disco-manifesto, misturando os talentos e as influências de todos os membros do grupo tropicalista. Começava a gestação do álbum Tropicália ou Panis et circencis. Torquato seria o responsável, junto com Caetano, pelo texto da contracapa. Ele também faria duas parcerias com Gil, sendo que uma das letras acabou transformada em uma espécie de hino das causas do movimento, ao lado de “Tropicália” de Caetano: era “Geléia geral”.
Tropicalia ou Panis et Circencis
O álbum, que só apresentava composições inéditas, não trazia a canção-título de Veloso. Na emblemática capa (acima), Torquato posa de dândi ao de Gal Costa. Em julho o disco foi lançado e se revelaria um sucesso de público e crítica. A revista Realidade o aclamou como álbum do ano, e Augusto de Campos escreveu artigos e ensaios referendando a inovação e a coragem do grupo.
Vale ressaltar que, pouco antes, Torquato participou do evento no centro do Rio que ficou conhecido como a “Passeata dos Cem Mil”, que convergia para a igreja da Candelária. O poeta estava na primeira fila, junto com outros artistas.
Torquato Neto, Gil, Nana Caymmi e outros na passeata dos Cem Mil no RJ
Na época, também, teria duas letras suas no LP de Nara Leão: “Mamãe, Coragem” (também presente no disco-manifesto) e a inédita “Deus vos salve esta casa santa” (parceria com Caetano).
Já fazia um tempo que estava fora do Jornal dos Sports, quando começou a trabalhar na redação do Jornal da Tarde. O salário era pequeno e por isso continuava a receber uma ajuda financeira do pai. Através da cantora Zezinha Duboc, Torquato conheceria Ciro Junqueira, que se tornaria um grande amigo. Ativista do movimento estudantil, membro do PCB, Ciro aproximaria Torquato da atividade revolucionária, envolvendo-o ativamente em estratégias de defesa e fuga de vários estudantes clandestinos. Houve um momento em que seu apartamento foi transformado em aparelho, com o consentimento de Ana. Ainda assim, tudo aconteceria em moldes próprios do anarquismo, já que o poeta não era filiado a nenhum partido e nem tinha interesse em engajar-se. Entretanto, fazia questão de resistir de todas as formas à ditadura.
TorquatoNo plano emocional, Torquato estava tendo novas crises depressivas. Não raro ele sumia por até dois dias. Há evidências de que fora uma paixão interrompida que o levou a tentar suicídio, ingerindo um frasco inteiro de comprimidos Valium. Foram momentos dramáticos, Ana encontrou-o prostrado e providenciou sua remoção até um hospital. Todos os amigos foram acionados e aguardavam ansiosos na sala de espera enquanto ele era submetido a uma lavagem estomacal. Nana Caymmi comentaria posteriormente: “Todos ficaram preocupados por que o estado de saúde dele era grave. Havia um clima de paixão no ar, coisa de poeta. Para mim, ficou claro que era uma paixão pelo Caetano. Todos ali falavam disso”[15]. Vários amigos e pessoas próximas confirmam que existia um envolvimento de ordem sentimental e sexual entre os dois. Já Caetano afirma veementemente que não. Garante que, na época, Torquato era o seu melhor amigo, que eram muito íntimos, mas que nunca haviam sido namorados ou amantes. Entretanto, Aderbal, um amigo homossexual que diz ter se relacionado várias vezes com Torquato (e possui cartas que atestariam tal envolvimento), garante ter surpreendido os dois durante uma madrugada.
Enfim, o evento não seria a única tentativa de suicídio do poeta. A verdade é que a partir desse momento, ele se distanciaria bastante de Caetano e, em seguida, também de Gilberto Gil. Torquato permaneceria ainda dez dias internado no hospital, tendo as despesas custeadas por Gil, e depois seguiria para uma internação voluntária de quase um mês na Clínica Granja Flora. Aí, quem arcaria com os custos seria seu pai.
Após tais acontecimentos, Torquato iria estreitar sua amizade com o artista gráfico Rogério Duarte e com o artista plástico Hélio Oiticica. Conheceria também o candidato a cineasta maldito Ivan Cardoso e, algum tempo antes, o poeta Waly Salomão. Seria pela solicitação de Ivan que Torquato escreveria, para publicação em um jornal estudantil, o texto “Torquatália III”, já revelando certo desânimo com o movimento.
Em outubro, nascia na TV Tupi o programa tropicalista Divino, maravilhoso. O roteiro era concebido por Caetano e Gil, e a banda de palco eram Os Mutantes. Na época, o grupo e o poeta já não eram mais amigos, ainda que os motivos exatos do rompimento nunca tenham ficado muito claros. Capinam também havia se afastado de todos — ainda que sem brigas —, e afirmaria posteriormente que havia uma certa disputa velada entre ele e Torquato: ambos eram poetas e escreviam letras, não eram intérpretes, e parecia não haver espaço para os dois no grupo. Aos poucos, se afastou, firmando parcerias com outros músicos, pouco antes de Torquato também se distanciar dos tropicalistas.
Sergio Mendes & Brazil'66 - LookAround: álbum continha plágio de letra escrita por Torquato.Nesse período, Sérgio Mendes e o seu grupo, o Brazil’66, lançaria nos EUA o álbum Look Around (capa ao lado). Uma das faixas do disco era “To say goodbye”, a versão em inglês de “Pra dizer adeus”. Entretanto, os créditos saíram para Edu Lobo e a vocalista Lani Hall. Torquato levou a questão aos tribunais e acabou recebendo uma indenização em dinheiro pelo acontecido.
As crises de depressão do poeta estavam sendo cada vez mais constantes, e ele iria se afastando mais e mais dos antigos amigos. Na época, sua companhia preferida e constante passou a ser Hélio Oiticica. O artista estava se preparando para inaugurar uma exposição na Galeria Whitechapell, em Londres, no início de 1969, e iria viajar de navio junto com dezoito caixotes contendo seus trabalhos. Deprimido e isolado, Torquato havia sido aconselhado por pessoas próximas a deixar o país. Coincidentemente, Oiticica o convidou para acompanhá-lo até Londres. Então, o poeta procurou Augusto de Campos, explicando a situação e solicitando ajuda para traduzir para o inglês algumas de suas letras e poemas. Anos depois, o concretista declararia: “Eu não faço isso pra ninguém, mas fiz para ele, sentindo sua aflição e desamparo depois da partida dos baianos. Foi a última vez que o vi. Diferentemente de Caetano e Gil, ou Tom Zé, ele era só letrista, não era compositor nem intérprete, não cantava nem tocava instrumento algum. Isso limitava a sua atuação e acabaria faltamente por marginalizá-lo”[16].
Como bem demonstra Toninho Vaz[17], a viagem marcada às pressas, sob forte pressão e sem planejamento, conferia ao momento um grande sabor de aventura. Além das obras de arte e suas malas, levavam consigo um tijolo de maconha que deveria durar toda a travessia e ainda provê-los nos primeiros tempos da temporada na Inglaterra. Quando o presidente Costa e Silva assinou o Ato Institucional n° 5, em dezembro, legalizando a repressão em sua força máxima e instaurando o período mais terrível de toda a ditadura militar, Torquato e Oiticica já estavam cruzando o Atlântico havia dez dias. Ao todo, ficariam catorze dias em alto mar, fazendo uma escala em Vigo, na Espanha, e em Rotterdam, na Holanda, onde ficaram sabendo do decreto AI-5, que fora batizado pelos dois de “blitz facista”.
Naquele mesmo mês, a revista Realidade publicava um balanço da tropicália, referindo-se a Torquato como o “lírico poeta que (…) tem hoje, talvez, a posição mais radical entre os letristas brasileiros”. Também de 1968, é digno de nota o lançamento do filme O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla. A película iria inaugurar o movimento chamado de Cinema Marginal, que comporia a estética cinematográfica da contracultura, em oposição ao Cinema Novo de Glauber Rocha — que a essa altura já chamava atenção de nomes como Jean-Luc Godard e Michelangelo Antonioni. Torquato ainda se converteria em um dos grandes defensores desse movimento, forjando-lhe a alcunha de cinema udigrúdi — uma dicção pejorativa para o termo underground.
Desembarcando em Londres, foram recepcionados por Guy Brett, curador da exposição e um verdadeiro lord inglês, que os tratou com todas as honras possíveis. Os brasileiros iriam se envolver com o Exploding Galaxy[18], uma comunidade idealizada pelo artista filipino Daniel Medalla — que estava em viagem mística pela Índia. Mantendo um bom relacionamento com o administrador da comunidade — um sujeito chamado Paul Keeler — Torquato passaria vários dias instalado por lá.
A PUREZA É UM MTO: o poeta na Galeria Whitechapell, em Londres (1969), apreciando a obra do amigo íntimo Hélio Oiticica.Enquanto trabalhavam na montagem das obras na Galeria Whitechapell, Torquato se mostraria muito preocupado com a situação de Ana. Haviam combinado que, assim que ele estivesse devidamente instalado, a esposa seguiria para encontrá-lo na Europa. Quando ficou sabendo, através do empresário e produtor Guilherme Araújo, que Caetano e Gil haviam sido presos pelo regime militar — algo que não fora divulgado na mídia nacional — inclusive com os detalhes de que os músicos tiveram seus cabelos e barbas cortados, o poeta passou a temer que Ana fosse detida para fornecer informações sobre seu paradeiro. Estava apenas aguardando o recebimento de direitos autorais para enviar a passagem à companheira, enquanto ia se correspondendo com o Brasil através de cartas.
O curador da exposição de Oiticica, Guy Brett, estava articulando através do crítico Paul Overy um encontro para Torquato entrevistar John Lennon e Yoko Ono, que estavam lançando o álbum vanguardista Two Virgins[19]. A intenção do poeta era vender a pauta para publicações no Brasil, mas o encontro nunca ocorreu. Mesmo assim, criou-se o mito de que ele realmente havia estado com o beatle.
Em um esbarrão casual nas escadarias do metrô, Torquato encontraria o amigo e líder estudantil Ciro Junqueira. Ele informou o poeta de que, nos últimos dias, estivera escondido no seu apartamento, e que Ana o ajudara a fugir do país, pois estava sendo perseguido pelo regime. Imediatamente, foi providenciado para que ele se alojasse na YMCA[20]. A dupla passaria a circular por Londres, e Ciro se especializaria em roubar supermercados e moedas das cabines telefônicas — que ele estourava com uma grande chave de fenda.
Hendrix em casa (1969). Torquato visitou e fumou haxixe com o guitarrista. Após o encontro, previu sua morte.É no início de 1969 que Torquato conheceria o guitarrista Jimi Hendrix[21], num grande apartamento em Kensington. O contato foi feito através de Carlo, um porto-riquenho que apresentou ao guitarrista as credenciais de Torquato como um poeta-letrista brasileiro e revolucionário. Hendrix estava em primeiro lugar nas paradas com seu álbum Electric Ladyland, e seis meses depois seria consagrado como a maior atração do festival de Woodstock. Convidou Torquato para fumar haxixe, que aceitou a oferta, e juntos ouviram o álbum branco dos Beatles. Seria o único encontro dos dois, e Torquato diria para diversas pessoas — inclusive logo ao voltar para o Brasil — que tivera uma visão, enxergando a morte no rosto do lendário músico. O comentário ficaria muito conhecido ao se revelar uma previsão certeira, quando o guitarrista veio a falecer cerca de um ano e meio depois de cruzar com o poeta.
Em meados de fevereiro, Ana chegou a Londres ainda em tempo de conferir a vernissage de Oiticica, que vinha sendo incensado pela crítica européia como um artista dos novos códigos. O casal conseguiria alugar um pequeno apartamento na região sudeste da cidade e, ainda que vivesse em constante contenção de despesas, aproveitava a riqueza cultural da cidade, freqüentando alguns shows, exposições, teatro e cinema. Em carta ao cunhado Hélio, Torquato afirmaria que a retrospectiva de Van Gogh, com mais de 300 quadros, já teria valido a viagem. Ficara emocionado, também, com Teorema, filme de Pier Paolo Pasolini, e com uma trilogia de Roman Polanski[22]. Quando volta ao Brasil, passou a manifestar o desejo se envolver com cinema autoral.
Torquato, o Rimbaud do Tropicalismo na EuropaApós a temporada na Inglaterra, Torquato e Ana se mudam para Paris na metade do ano. De inicio, ficariam hospedados no detestável hotel Excelsior, até trocarem para o Stella, um pouco melhor e próximo à Sorbonne e aos Jardins de Luxemburgo. Ali, conviviam com uma vizinhança heterogênea, composta por exilados, músicos, poetas, desertores da Guerra do Vietnã e militantes dos Panteras Negras. Na França, encontrariam muitos brasileiros: Hugo Carvana e a jornalista Martha Alencar e amigos, como Ronaldo Bastos, Alzira Cohen e João Alberto Saldanha. Ronaldo, que estava hospedado na casa de Ruy Guerra, ficara encantado com o hotel Stella — que apesar de mal conservado, era uma festa diária — e teve o privilégio de ficar num quarto cujo teto continha um poema escrito de próprio punho por Allen Ginsberg. Correspondências posteriores revelariam que Torquato era também um leitor dos beatniks.
Alzira Cohen havia conhecido um padre francês que era fã ardoroso de música brasileira, conhecido de Chico Buarque. Ele identificava Torquato como um compositor importante nesse contexto e o convidaria para trabalhar num bar, uma cave, que funcionava na casa paroquial (!). O lugar então recebeu decoração com as cores verde e amarela e registrou um aumento de freguesia. O poeta brincava que aquela era “a única boate do mundo habitada por freiras”.
Torquato e Ana em Paris.O cotidiano deles em Paris era recheado de programas baratos e interessantes. Freqüentavam os cafés dos bairros boêmios, e deliravam imaginando Paris é uma festa, de Hemingway. Certa vez, Torquato e Alzira Cohen encontraram Jean-Luc Godard em um bar, um ídolo do poeta. Não se atreveram a puxar conversa. Como faziam visitas freqüentes à cinemateca do Museu de Arte Moderna, nos finais de tarde, viram-no pessoalmente uma segunda vez.
Ainda que os ares parisienses fizessem bem ao poeta, e os bons momentos na cidade tornassem seu cotidiano mais leve, ele novamente seria acometido de crises depressivas. Em julho, Ana faria uma revelação marcante: estava grávida. A notícia foi muito festejada por ele e amigos. Torquato tratava com muito carinho a idéia de Ana ser mãe, mais do que a dele ser pai.
Desde que saíra do Brasil, estava deixando o cabelo crescer. Certa noite acompanhou uma amiga até o metrô e, na volta, fora abordado pela polícia, junto com outros cabeludos. Como não carregava documentos, acabou espancado. A situação não era tão tranqüila na capital francesa, e também pelo desejo de que o filho nascesse no Brasil, o casal começou a planejar sua volta. Procurando aproveitar ao máximo o que o velho mundo tinha a oferecer, tomaram um trem até Madri, onde passaram alguns dias. Conheceram também Toledo, e seguiram para Lisboa. Ficariam na cidade portuguesa por quase quarenta dias. Quando o dinheiro deles foi terminando, passaram os dias lendo no hotel. Em 5 de dezembro, embarcaram em um vôo da Varig com destino ao Rio de Janeiro.
No Rio, foram morar no apartamento da família de Ana. O intenso período de praticamente um ano na Europa serviu como divisor de águas na vida de Torquato. Seus parâmetros, agora, eram outros. Os conhecidos estranharam-no, estava mais “louco”, atrevido, cabeludo, agressivo e afetado. Na volta, reencontrou vários amigos, como Waly e Jorge Salomão, Ivan Cardoso e Jards Macalé. Também firmaria novos relacionamentos com pessoas interessantes: Luís Otávio Pimentel, Luís Melodia, Nonato Buzar…
Torquato Cabeludagem!Começou a trabalhar como copydesk no jornal Correio da Manhã. Gozava então de enorme notoriedade pelas suas parcerias do tempo da tropicália. O secretário de redação do jornal, Fernando Lemos, relata que o poeta tinha uma concepção profunda da resistência como arma política e ideológica. Era um outsider autêntico, um corpo estranho na redação. Também confirmaria que ele faria diversas vezes a previsão da morte de Jimi Hendrix, ainda antes do sinistro se concretizar. Muito falado e pouco conhecido, já que sua imagem fora pouco divulgada pela imprensa, a curiosidade em torno de Torquato era recorrente.
No dia 27 de março, seu único filho nasceu: Thiago Silva de Araújo Nunes. A amiga Alzira Cohen registra que o poeta se sentia desconfortável com a paternidade. Ele, um iconoclasta incorrigível, não conseguia assumir o papel de chefe de família, com regras a cumprir. A partir de então, as crises de depressão se acentuariam e o alcoolismo sairia do controle. A seqüência de excessos e longas noites de depressão levaram a um estado insustentável. No início de outubro, Torquato decidiria se internar em uma clínica de repouso, no bairro Engenho de Dentro. Por se tratar de uma internação voluntária, ele podia circular livremente pelas dependências do sanatório. Recebia doses diárias do calmante Mutabon D, injetável. Tinha a sua disposição uma máquina de escrever, com a qual iria criar relatos impressionantes, produzindo um marcante diário. Logo receberia a visita da família, que viria de Teresina. Ele não via os pais há quase três anos. Jards Macalé também apareceria com certa freqüência, praticamente obrigando o poeta a escrever novas letras. Sua namorada, Giselda, era estagiária de psicologia na instituição, e fora alertada pelo médico responsável da possibilidade de novas tentativas de suicídio. No final do mês, oprimido pela falta de liberdade, fugiu do hospital pela porta da frente.  Mais tarde, seria encontrado longe dali, bêbado e sujo. Duas semanas depois, muito deprimido, tentaria o suicídio novamente, tomando de uma só vez Mogadon, Amplictil ampola e Diempose. TorquatoNão se sabe o motivo — talvez a ingestão excessiva de álcool — mas o coquetel não surtiu efeito. Fragilizado, retornou ao sanatório por um período de mais dez dias. O diagnóstico dos médicos apontava para esquizofrenia, além do alcoolismo.
Permaneceria no Rio, com Ana e Thiago, até a virada do ano. Na primeira semana de janeiro de 1971, seguiria para uma temporada de três meses em Teresina, na casa dos pais. Sua chegada chamou a atenção de imprensa local, e ele concedeu entrevistas para vários veículos de comunicação, falando dos antigos parceiros e da temporada no exterior. Declarou também que seu envolvimento com música tinha se reduzido significativamente e que se voltara para o cinema. Deslizes por conta do alcoolismo lhe renderiam incômodos com a família, que ficava envergonhada por ele ser visto naquele estado numa cidade pequena como Teresina. Torquato teve alguns textos publicados em jornais locais, e no carnaval classificaria um samba-enredo em parceria com Silizinho, antigo companheiro de serestas.
No dia 24 de março, retorna ao Rio com a intenção de dar a volta por cima. As portas do trabalho se abririam novamente no Correio da Manhã, onde se dedicaria à criação de um efêmero suplemento cultural, o Plug. Integravam a equipe desse caderno o amigo Waly Salomão e a repórter Scarlet Moon. Com o editor Luís Carlos Sá — que em breve formaria um trio com Zé Rodrix e Guarabira —iria compor uma nova música: “Toada”. E com Jards Macalé escreveria uma canção muito significativa e famosa: “Let’s Play That”.
Flor do Mal: jornal undergroundUma nova publicação alternativa, de caráter profundamente contracultural, iria surgir: era o jornal Flor do Mal. Fora idealizado por Luiz Carlos Maciel enquanto estava na prisão, com o restante da equipe do Pasquim. Para a concepção gráfica, ele chamou Rogério Duarte e Ana para cuidar da diagramação. Torquato iria apoiar e divulgar essa produção “maldita”, mas nunca contribuiria com textos, seja para não entrar no espaço da esposa, seja por já se revelar dissidente do Cinema Novo, cujos integrantes eram próximos da equipe editorial.
Quando o jornal Correio da Manhã foi fechado, Torquato imediatamente passou a trabalhar no Última Hora, de propriedade do mesmo grupo de mídia. Então, se dedicaria a uma coluna diária, batizada de Geléia geral, que se converteu em um verdadeiro marco do jornalismo cultural brasileiro ao mesclar texto noticioso com práticas artísticas, resultando numa consistente prosa-poética. O poeta converteu o espaço em veículo de notícias para aficionados no formato super-8, o chamado Cinema Marginal, criando polêmicas com a turma do Cinema Novo — criticando ferrenhamente a distribuição de verbas oficiais para cineastas “qualificados” —, o que acabou repercutindo em outras publicações (Pasquim, Domingo Ilustrado). Também seria um grande divulgador de publicações alternativas, como Flor do Mal e JA, revista de Tarso de Castro, criada posteriormente ao Pasquim. O trabalho iria conferir um novo dinamismo em sua vida. Ele circulava pela noite com desenvoltura, sendo identificado como crítico mordaz e implacável. Seus editores ressaltariam o cuidado profissional que mantinha, com destaque para a alta produtividade, a pontualidade na entrega dos textos e o esmero gramatical. Demonstrava rigor no que fazia e tratava o jornalismo cultural com extrema seriedade.
Torquato é o Nosferatu Brasileiro do Cinema Marginal.Através do cineasta Ivan Cardoso, viveria sua primeira grande experiência com o Cinema Marginal: interpretaria o papel principal de vampiro no longa-metragem Nosferato no Brasil. Tecnicamente precário, era uma produção totalmente independente, com uma linguagem extremamente peculiar, que não era entendida por todos os espectadores. Foi transformado em objeto cult pela intelectualidade paulistana, especialmente pelo trio dos poetas concretos. Depois desse, haveria outros ao longo de 1971 e 1972: Helô e Dirce (trocadilho com a expressão “falou e disse”), de Luís Otávio Pimentel, polêmico pelas referências andróginas; A Múmia volta a atacar, de Ivan Cardoso, inacabado em virtude de problemas técnicos; Adão e Eva, do paraíso ao consumo, de Noronha e Alberto Albuquerque, rodado em sua terra natal, Teresina.
No segundo semestre de 1971 começaria a idealizar e arregimentar escritores para participar do projeto Navilouca. Consistiria em uma grande revista, um almanaque, de edição única, traçando um panorama da poesia marginal e experimental produzida no Brasil naquela época (capa abaixo). Teria um projeto gráfico arrojado e o conceito todo partiria de Torquato, mas Waly Salomão ajudaria definir os parâmetros editoriais e a escolher os convidados. Entre os nomes que integrariam a publicação estavam Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, Duda Machado, Hélio Oiticica, Chacal, Waly Salomão, Torquato Neto e uma série de outros artistas performáticos. O título era inspirado na embarcação que percorria a Europa, na Idade Média, recolhendo e afastando das cidades as pessoas que sofriam de alguma patologia mental. O subtítulo era Almanaque dos aqualoucos. Torquato até conseguiu reunir patrocinadores para financiar o projeto, mas a produção se estenderia por todo o ano seguinte.
Navilouca: almanaque dos aqualoucos
Dessa época até o final de sua vida, Torquato passaria a consumir muitas drogas, inclusive quantidades abusivas de LSD — um psicodélico fortíssimo. Faria uma experiência tomando ácido lisérgico diariamente por um mês, anotando os “resultados” em um caderno, que foi perdido (ou destruído). Também, continuava a beber em excesso. Com a chegada do final de ano, dona Saló e doutor Heli receberiam notícias desagradáveis sobre o poeta: ele e Ana estavam saindo do apartamento por falta de pagamento e indo morar com os pais dela. Somado isso às bebedeiras, o pai do Torquato decidira cancelar a remessa da mesada ao filho, tentando atraí-lo de volta para casa, mas o fato apenas traria mais dificuldades ao casal.
Profético trecho do original de Todo Dia É Dia DFoi convidado pelo editor José Álvaro a produzir um livro de poesias. A obra iria integrar a coleção Na corda bamba, e se chamaria Pezinho pra dentro, pezinho pra fora. Ele chegou a escrever vários poemas para o livro, mas morreu antes de terminá-lo. Já em 1972, voltaria a se envolver com teatro e música. Participaria ativamente do grupo Oficina, atuando na peça Gracias, Señor, de José Celso Martinez. Com Roberto Menescal, Nonato Buzar e Carlos Pinto, cria novas músicas, escrevendo as letras de canções como “Que película!”, “Quase adeus”, “Três da madrugada” e a marcante “Todo dia é dia D”, cujo trecho profético é reproduzido, diretamente do original, acima.
Junto com o jornalista Tarso de Castro produz um show da cantora Lena Rios (na foto abaixo, com o poeta). Tendo gostado do resultado, resolver promover também um espetáculo de Luiz Melodia. Ele escreveria algumas letras para o cantor e compositor, de quem já vinha falando regularmente na sua coluna. O show seria realizado no Teatro Opinião, mas um incidente atrapalharia a apresentação. Antes de subir ao palco, toda a banda — que incluía o músico Piau, parente de Torquato — beberia além da conta. Um dos músicos chegou a desmaiar no palco, e os demais tiveram uma atuação pouco louvável. O poeta ficaria indignado, e brigaria com toda a equipe.
O poeta Torquato Neto queimando um fumo federal ao lado da cantora Lena Rios, na estrada de União  Foto de Arnaldo Albuquerque
Em março, decide acabar com a coluna Geléia geral. Argumentava que não tinha mais nada para tirar dela e, pessoalmente, achava que era um ciclo que havia se encerrado. Passa a freqüentar um restaurante natural, e teria tentado uma dieta macrobiótica. Nessa época, andava sempre vestido de preto. Enredado em um círculo vicioso de álcool e drogas, além do isolamento, fruto de seus desentendimentos e das críticas que escrevia, Torquato resolve passar uma temporada em Teresina. Mas não antes de cortar o longo cabelo, que mantinha desde a ida para a Europa.
Na cidade natal, encontraria velhos amigos editando um jornal alternativo, o Gramma. Logo escreveria alguns textos para a publicação e ajudaria os companheiros — envolvidos com jornalismo — a criar suplementos culturais para os jornais locais: o A Hora ganharia o caderno A Hora Fatal, e O Estado produziria O Estado Interessante. Com metade do rosto pintado, no manicômio.No dia 30 de maio faria uma internação voluntária no Sanatório Meduna, onde permaneceria por dez dias. Passaria o tempo lendo e preparando o material que seria publicado em Navilouca. Com o amigo Noronha, fez fotos nos corredores do manicômio para ilustrar a revista. Nelas, aparece com metade do rosto pintado de vermelho. Também, escreveria ali o roteiro de O terror da vermelha, um filme mudo, cheio de eventos poéticos, que iria rodar imediatamente, em Teresina. Era a história de um assassino em série, e todas as vítimas da película eram interpretadas por parentes de Torquato, incluindo aí seus próprios pais. O último a ser assassinado era ele próprio. Antes de voltar ao Rio, concederia duas longas entrevistas para jornais locais.
Quando retorna para a capital carioca, em julho, não foi para a casa de Ana. A separação se configurava, então, em termos físicos. Passaria a dormir na casa de amigos ou em uma pensão. Os relatos dessa época eram de que ele andava tomando muitos ácidos, ficando até três dias sem dormir, tendo crises constantes de pânico. Produziria alguns poucos artigos para jornais. Ademais, vagaria pela cidade e escreveria em profusão. Os amigos notavam que ele estava visivelmente transtornado. No mês de outubro, queimou uma grande quantidade de papéis, que incluíam anotações, poemas e vários textos desconhecidos. Ana conseguiu salvar algumas coisas desse material. Também se desfez de toda sua coleção de literatura de cordel, além de vários livros do seu acervo pessoal.
Novembro chegaria com a notícia da morte de Ezra Pound. As pessoas próximas até estranharam como Torquato aparentou uma rápida volta por cima, envolvendo-se em várias atividades, finalizando a produção de Navilouca. No dia 9, aniversário do poeta, era a estréia do longa-metragem Copacabana, mon amour, de Rogério Sganzerla, com exibição na cinemateca do Museu de Arte Moderna. Sua presença era praticamente obrigatória, já que aquele era um marco na consolidação do Cinema Marginal como foco de resistência cultural. Depois da exibição, ele iria comemorar o aniversário com alguns amigos próximos no bar Pombas. Estavam presentes, Ana, a cunhada Ângela e seu namorado José Carlos, Luís Otávio Pimentel e João Rodolfo do Prado, editor do jornal Última Hora. Especula-se que o poeta estivesse sob efeito de LSD e cocaína. Verborrágico e messiânico, dava conselhos e distribuia tarefas aos amigos, falando muito sobre o que devia ser feito e a necessidade da resistência política e ideológica. Por volta das 4h30, saíram do bar e foram para casa.
Naquela noite, o pequeno Thiago estava no berço e, quando Ana caiu no sono, Torquato foi ao banheiro. Vedou todas as passagens de ar com jornais e panos. Ligou o chuveiro e, junto, o gás. Passou os últimos momentos de sua vida escrevendo o poema derradeiro, que terminava com o aviso: “Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”. Pela manhã, quando foi encontrado, era tarde demais. Não havia sido apenas mais uma tentativa.
Torquato Neto
Torquato Pereira de Araújo, neto foi dado oficialmente como morto às 9 da manhã do dia 10 de novembro de 1972. De avião, o corpo seguiu para Teresina. Ana não acompanhou a missa e nem o enterro — decidira que não veria o marido morto. O cortejo fúnebre foi acompanhado por uma grande multidão. Os principais jornais do país estampavam a tragédia na capa do dia 11. E com apenas 28 anos, tendo vivido intensamente e produzido uma obra de inestimável valor artístico, o precoce poeta Torquato Neto encerrava sua saga, tal qual um personagem de literatura de cordel.
(Rodrigo de Andrade)
Notas
[1] Parte integrante do capítulo II da dissertação de mestrado “Torquato Neto: uma poética da contracultura”, defendida por Rodrigo de Andrade junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Passo Fundo em 2008.
[2] Jornalista, tradutor, crítico literário e poeta. Natural de Teresina (como Torquato), morreu com apenas 32 anos de idade, em 1962, em um desastre aéreo no Peru. É autor de O homem e sua hora (1955), e seus poemas foram reunidos em antologias póstumas. Sua obra antecipou experiências estéticas do concretismo.
[3] VAZ, Toninho. Pra mim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p.20.
[4] Hindemburgo Dobal Teixeira, nascido em Teresina no ano de 1927. Poeta, cronista e Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Piauí. Imortal da Academia Brasileira de Letras, pertence também à Academia Piauiense de Letras, é considerado o maior poeta vivo daquele estado. Entre suas obras destaca-se a estréia O tempo conseqüente (1966) e O dia sem presságios (1969), com a qual foi vencedor do Prêmio Jorge de Lima de poesia, conferido pelo Instituto Nacional do Livro. É autor também de A viagem imperfeita (1973), A província deserta (1974), A cidade substituída (1978), Os signos e as siglas (1986), entre outros.
[5] MACIEL, Luiz Carlos. Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p.55.
[6] CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo:  Ed.34, 1997. p.34-35.
[7] Levou para Salvador artistas e pensadores de peso, como o maestro e compositor alemão Hans Joachim Koellreutter (que dirigiu os Seminários Livres de Música), os músicos suíços Anton Walter Smetak e Ernst Widmer, a arquiteta italiana Lina Bo Bardi (para a direção do Museu de Arte Moderna da Bahia), a bailarina e coreógrafa polonesa Yanka Rudzka (diretora da Escola de Dança), o antropólogo e fotógrafo francês Pierre Verger e o escritor português Agostinho da Silva (criador do centro de Estudos Afro-Orientais). Ao se radicarem na cidade, essas figuras acabaram injetando boas doses de modernidade e vanguarda na vida cultural da Bahia.
[8] Carlos Eduardo Lima Machado, o Duda Machado, nascido na Bahia em 1944. Poeta, redator e compositor, é também tradutor de Anthony Burgess, Gustave Flaubert, Rudyard Kipling, Ford Madox, Jean-Paul Sartre, Robert Louis Stevenson, Mark Twain, Émile Zola, entre outros. Dos seus livros de poesia se destaca Zil (1977), Crescente (1990), Margem de uma onda (1997), e alguns títulos de poesia para crianças, como Histórias com poesias, alguns bichos & cia (1997). Doutor em Teoria da Literatura, é professor na Universidade Federal de Ouro Preto.
[9] André-Paul-Guillaume Gide (1869-1951), francês, Nobel de Literatura em 1947, conhecido por produzir uma obra que evidencia o desprezo pelas convenções sociais, sexuais e religiosas de sua época.
[10] Rainer Maria Rilke (1875-1926), poeta austríaco, sua obra é conhecida como uma celebração da vida interior. É aclamado como uma das maiores expressões da poesia mundial nas primeiras décadas do século XX.
[11] Produção do CPC — Centro Popular de Cultura, da UNE — composto de cinco curtas-metragens dirigidos por cineastas engajados politicamente: Carlos Diegues, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Miguel Borges e Marcos Farias.
[12]O Solar Santa Terezinha era um casarão branco (…) em estilo colonial. Originalmente (…) serviu de residência para o Vigário-Geral do Rio de Janeiro. Mais tarde, dirigido por freiras, foi transformado em asilo para idosos e pensionato para moças, até virar uma espécie de apart-hotel. (…) Pra se ficar com um apartamento, nem mesmo fiador era exigido pela proprietária, dona Jurema (…). Já a responsável pela portaria e tesouraria, dona Lourdes, mostrava um respeito incomum pela vida boêmia de seus hóspedes. (…) Entre os 85 apartamentos que compunham os vários corredores do Solar, era difícil encontrar um que não tivesse um violão pendurado na parede. Exceto por alguns jornalistas, professores ou mesmo aeromoças que ajudavam a compor a fauna local, os artistas eram maioria. Em temporadas mais ou menos extensas, passaram por lá compositores e músicos como Toquinho, Gutemberg Guarabira, Zé Kéti e os integrantes do grupo vocal MPB-4, e atores, como Maria Gladys, Cláudio Marzo, Betty Faria e Miriam Pérsia. (…) O artista gráfico Rogério Duarte (…) tinha uma boa definição para o lugar: “O Solar é uma festa móvel, onde só é proibido o que não é proibido”. (CALADO, 1997. p.89-90). Além dos citados, o casarão também abrigaria muitos outros artistas e personalidade: Caetano Veloso, Rogério Duarte, Paulinho da Viola, Abel Silva, Mariel Mariscot, Darlene Glória, Lenine Dale, Paulo Diniz, o poeta Abel Silva. E havia todos aqueles que circulavam constantemente pelo local: Gil, Bethânia, Gal Costa… O solar também seria imortalizado numa das parcerias mais marcantes de Caetano e Gil, a emblemática “Panis et circencis”, gravada pel’Os Mutantes no disco-manifesto do movimento tropicalista, que faz alusão à maconha — muito consumida pelos moradores e freqüentadores do local — nos versos: Mandei plantar / folhas de sonho / no jardim do solar
[13] VAZ, 2005. p.20.
[14] O disco de Gil, Louvação (Philips, 1967), trazia, além da faixa título, mais duas composições de Torquato Neto: “A Rua” e “Rancho da Rosa Encarnada” (essa escrita a três: Torquato, Gil e Geraldo Vandré). No álbum Domingo (Philips, 1967), lançamento em conjunto de Caetano Veloso e Gal Costa, havia versões de “Minha Senhora” e “Zabelê”, de Torquato e Gil.
[15] VAZ, 2005. p.113.
[16] Ibdem, p.122-123.
[17] Ibdem, p.124.
[18] Consistia em um prédio em que um grupo heterogêneo de artistas, chamados por ele de “exploradores transmídia”, pudessem viver e trabalhar enquanto encenavam trabalhos e realizam performances pela cidade. No Exploding Galaxy ninguém pagava aluguel, em compensação, viviam sem luz e calefação.
[19] Polêmico por trazer na capa uma fotografia do casal nu e um vinil com apenas duas faixas, uma de cada lado, com mais de 28 minutos de colagens de sons, compondo uma curiosa peça de música experimental.
[20] Young Men Christian Association, a Associação Cristã de Moços — ACM.
[21] Com uma carreira efêmera e apenas três discos de estúdio — Are You Experienced (1967), Axis: Bold as Love (1967) e Electric Ladyland (1968) —, Hendrix seria aclamado por público e crítica como o maior guitarrista de toda a história da música. Título que ele mantém até hoje.
[22] Composta pelos filmes Cul-de-Sac (1965), Repulsion (1965) — no Brasil chamado de Repulsa ao Sexo —, e Rosemary’s Baby (1968).
Bibliografia
ANDRADE, Paulo. Torquato Neto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume / Fapesp, 2002.
BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007.
BEZERRA, Feliciano. A escritura de Torquato Neto. São Paulo: Publisher Brasil, 2004.
BRANCO, Edwar A. C. Todos os dias de paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005.
CALADO, Carlos. A divina comédia dos Mutantes. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo:  Ed.34, 1997.
FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria alegria. Cotia: Ateliê, 2000.
LEMINSKI, Paulo. Os últimos dias de um romântico. In: Folha de São Paulo, suplemento Folhetim. São Paulo, 7 de novembro de 1982.
MACIEL, Luiz Carlos. Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
NETO, Torquato. Torquatália: do lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
NETO, Torquato. Torquatália: geléia geral. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
SAWYER-LAUÇANNO, Christopher. Escritores americanos em Paris. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.
VAZ, Toninho. Pra mim chega: a biografia de Torquato Neto. São Paulo: Casa Amarela, 2005.
VELOSO, Caetano. Verdades tropicais. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
ZÉ, Tom. Tropicalista lenta luta. São Paulo: Publifolha, 2003.
Crédito das imagens:
Todas as imagens que ilustram o texto foram encontradas na internet. A maior parte delas no site Torquato Neto: o anjo torto. A página é resultado de um impressionante esforço de George Mendes no intuito de preservar e divulgar a obra do poeta.

Fonte : http://www.osarmenios.com.br/2009/11/%E2%80%9Cum-poeta-nao-se-faz-com-versos%E2%80%9D/comment-page-1/#comment-25631

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Ciclo Adeus Eric Rohmer

   
informativo 004/10
05 de fevereiro de 2010


Ciclo Adeus Eric Rohmer



Dias 9, 10, 11 e 12 de fevereiro de 2010 às 18h30
Sala Multiuso do Museu Victor Meirelles
 
O Projeto Agenda Cultural 2010 apresenta uma programação especial dedicada ao diretor francês Eric Rohmer (1920-2010), recentemente falecido em 11 de janeiro último. A exibição contemplará os Contes des quatre saisons (Contos das quatro estações), filmados por Rohmer ao longo da década de 1990. O evento é uma parceria do Museu Victor Meirelles, da Aliança Francesa e da Cinemateca da Embaixada da França. Todos os filmes possuem legendas em português. 
Na abertura do ciclo, na terça-feira, dia 9, após a exibição de “Conto de Primavera” haverá um debate com o cineclubista Gilberto Gerlach. Logo após a sessão de quinta-feira, será exibido o documentário La Fabrique du Conte d´été, dirigido por Jean-André Fieschi em 2005. Trata-se de um documentário sobre o filme Conto de Verão, de Rohmer.

Programação
09 de fevereiro - Conto de Primavera (Conte de Printemps, 1990)
10 de fevereiro - Conto de Inverno (Conte d´hiver, 1992)
11 de fevereiro - Conto de Verão (Conte d´été, 1996), seguido de La Fabrique du Conte d´été (direção: Jean André Fieschi, 2005).  
12 de fevereiro - Conto de Outono (Conte d´automne, 1998)

Sobre Eric Rohmer
“Em 1952, Eric Rohmer inicia sua carreira com a realização de Les petites filles modèles que ele não chega a finalizar em virtude de uma produção deficiente. Em 1959, ele efetua um novo ensaio com Le signe du lion com produção de Claude Chabrol. O filme é um fracasso, não se beneficiando do entusiasmo que suscitavam então os filmes da Nouvelle Vague. Será apenas em 1969 que Rohmer chamaria a atenção da crítica com Ma nuit chez Maud, com Jean-Louis Trintignant e Françoise Fabian nos papéis principais. Os temas favoritos de Rohmer aparecem claramente definidos: o sentimento amoroso, a investigação sobre o universo feminino, os reencontros. O cineasta se lança num projeto ambicioso: sob o título de Contes moraux, ele reúne diversos filmes tal qual: La boulangère de Monceau (1962), La collectionneuse (1966) e L'amour l'après-midi (1972). Eric Rohmer gostava de trabalhar em todas as partes de seus filmes: ele escrevia os roteiros perpassados por narrativas com elementos autobiográficos. Fiel na escolha de seus colaboradores, ele convocou diversas vezes o diretor de fotografia Nestor Almendros, figura emblemática da fotografia da Nouvelle Vague. O estilo de Rohmer é bem característico: a ação se desenrola lentamente, os diálogos são simples, os atores não parecem estar sendo dirigidos, como se eles improvisassem serenamente. Cada plano é composto como um quadro, evocando Gauguin e os impressionistas. Ao longo dos anos 1980, Rohmer roda seus novos filmes, Pauline à la plage (1982) ou Les nuits de la pleine lune são saudados pela crítica. No início dos anos 1990, ele empreende um novo ciclo de contos, cada um evocando uma estação, sendo o último, Conte d'automne, lançado em 1998. Mudando completamente o tom em 2000 com L'anglaise et le duc, afresco histórico com o fundo da Revolução Francesa onde uma jovem inglesa fiel ao Rei se eleva por seus ideais. Em 2003, Rohmer realiza Triple agent, história de um casal russo refugiado em Paris após a revolução bolchevique. Último filme, Les amours d'Astrée et Céladon (2007), revisita o mito pastoral de Honoré de Urfé, num quadro onde reinam as crenças e tradições.” (Texto extraído de Ciné-Ressource, catálogo das bibliotecas e arquivos de cinema franceses, do website da  Cinémathèque Française).

Filmografia completa
 

Tortura e sequestro: é tudo verdade

Celiberti, à juiza: "Sim! É ele mesmo!"

Atualizado em 05 de fevereiro de 2010 às 00:08 | Publicado em 04 de fevereiro de 2010 às 23:55
lilian.jpg
A audiência aconteceu em Porto Alegre. Lílian Celiberti ficou diante do sequestrador, que identificou a pedido da juíza: "Sim! É ele mesmo!", nos conta o blog Alma da Geral.
O Coletivo Catarse também promete cobertura (a foto acima, feita antes do encontro, é do Sérgio Valentin, que pertence ao coletivo).
Abro parênteses para registrar que alguns dos melhores blogs do Brasil são gaúchos -- há dezenas de altíssima qualidade --, como o Dialógico, da Cláudia Cardoso e do Eugênio, que ajuda a espalhar essa imagem impagável:
simon_onde_esta.jpg
Fiquem agora com o artigo do Leandro Fortes, que explica a história para quem está chegando agora:
O sequestrador mostra a cara

Por
Leandro Fortes
no Brasília eu Vi

Um evento extraordinário se dará, hoje, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Sequestrada por agentes das ditaduras do Brasil e do Uruguai, a uruguaia Lílian Celiberti irá se encontrar, frente a frente, pela primeira vez, com seu seqüestrador, o ex-policial do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) gaúcho João Augusto da Rosa. Conhecido pela alcunha de “Irno”, o agente foi denunciado, há mais de 30 anos, pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha, então chefe da sucursal da revista “Veja” em Porto Alegre. Guiado pela intuição, Luiz Cláudio flagrou Irno e um comparsa dentro do apartamento onde Lílian morava e estava cativa, em 1978. Uma série de reportagens depois iria lhe dar o Prêmio Esso de Reportagem, em 1979, e garantir a vida não só de Lílian, mas também de seu companheiro de então, Universindo Diaz, ambos brutalizados pela tortura cometida, de um lado e de outro da fronteira, por lacaios da clandestina “Operação Condor” – a sinistra aliança de troca de prisioneiros levada a cabo pelas ditaduras do Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina, nos anos 1970.

Lílian Celiberti, moradora de Montevidéu, decidiu atravessar a fronteira para, justamente, retribuir a imensa generosidade do jornalista que, um dia, salvou-lhe a vida, a do companheiro e, por extensão, de seus dois filhos. Os garotos, então crianças, foram seqüestrados junto com a mãe e mantidos numa sala do Dops gaúcho enquanto a mãe era esfolada num pau-de-arara pela turma do delegado Pedro Seeling, da qual Irno fazia parte. Desmascarado por Luiz Cláudio no livro “Operação Condor: sequestro dos uruguaios”, lançado no ano passado pela editora L&PM, Irno decidiu processá-lo por danos morais.  

Eis aí uma boa metáfora sobre a relação do Brasil com a memória da ditadura militar e sua última cidadela, a Lei de Anistia. É uma forma de entender a reação dessa turma à proposta de uma Comissão da Verdade, inserida no texto do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, para responsabilizar torturadores da época do regime militar.

Irno foi o inspetor do Dops que colocou uma pistola na testa de Luiz Cláudio Cunha, este confundido, ao entrar no apartamento de Lílian Celiberti, com um membro da organização de esquerda à qual pertencia a uruguaia.  O repórter estava acompanhado do fotógrafo J.B. Scalco, que em seguida iria ajudar a decifrar a trama ao reconhecer o comparsa de Irno, o escrivão Orandir Portassi Lucas, mais conhecido por “Didi Pedalada”, ex-jogador do Internacional. Ambos os agentes foram condenados pela Justiça, em 1980.

Agora, Irno pede indenização por dano moral, alegando que Cunha não menciona sua absolvição por “falta de provas” no recurso que apresentou, em 1983, em segunda instância. O policial, lembra o jornalista, esqueceu-se de dizer que as “provas” do sequestro – Lílian e Universindo – estavam, então, submetidas à prisão sem processo legal e a todo tipo de torturas pela ditadura do Uruguai, que acabou apenas em 1985.

Na verdade, o que incomoda o inspetor Irno não é a omissão de Luiz Cláudio sobre o recurso na Justiça. Irno morre de vergonha é do papelão que ele protagonizou, obrigado pelos chefes a forjar uma nova identidade, com ajuda de fraude cartorária, para se contrapor ao depoimento do jornalista. Para tal, cortou os longos cabelos, moldou uma calva à navalha no alto da cabeça e cravou uma barba sem bigode na cara. Transfo rmou-se, assim, em uma patética caricatura de Abraham Lincoln eternizada no anedotário político do Rio Grande do Sul. Flagrado na farsa por Luiz Cláudio e outros repórteres gaúchos, Irno submergiu no lixo da História até reaparecer, agora, à caça de uns caraminguás a mais para a aposentadoria.

Do outro lado, “Operação Condor: o sequestro dos Uruguaios” recebeu, em 2009, o troféu Jabuti da Câmara Brasileira do Livro e a Menção Honrosa do prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. A obra também recebeu menção honrosa em Havana, Cuba, no prestigiado Prêmio Casa de Las Américas, de 2010, que reuniu 436 obras de 22 países.

O encontro histórico de Lílian com Irno será às 15h, na 18º Vara Cível, no Foro Central de Porto Alegre. Quem estiver na capital gaúcha e for jornalista de verdade, não pode perder esse encontro.

Todo apoio e solidariedade a Luiz Cláudio Cunha e Lílian Celiberti, portanto.